
Haliêutica
Arte de Pescar
As Origens – Ecos da Pré-História e Berços da Civilização
Esta seção mergulha nas raízes profundas da pesca, demonstrando que ela foi uma atividade de subsistência, bem como um dos primeiros e mais importantes campos para a inovação tecnológica, o desenvolvimento cognitivo e a expressão simbólica da espécie humana. A necessidade de capturar presas ágeis em um ambiente estranho e muitas vezes perigoso impulsionou a criação de ferramentas, o planejamento estratégico e a cooperação social, elementos que estão na base do que nos define como humanos.

Gravura de rede de pesca em placa de xisto, Artista Magdaleniano (c. 15.800 anos). Robitaille et al., 2024.
As Primeiras Redes e Anzóis
A pesca remonta ao Paleolítico, sendo uma atividade primordial para a vida. Além de arpões e anzóis, uma descoberta em Gönnersdorf, Alemanha, revelou a sofisticação dos nossos ancestrais. Com a técnica de imagem RTI, decifraram-se gravuras em placas de xisto de 15.800 anos, reescrevendo o que sabíamos sobre a tecnologia da época.
As imagens revelaram a mais antiga representação de pesca com redes, encontrada em placas do período Magdaleniano, apresentando um processo artístico e conceitual complexo. Artistas gravaram peixes e sobrepuseram um padrão de grade para simbolizar a captura. Esta decisão de representar o ato mediado pela tecnologia, e não apenas o animal, demonstra um notável nível de pensamento abstrato e simbólico para a época.
Este achado mostra que a pesca era um catalisador para a inovação. A criação de redes no Paleolítico Superior exigia conhecimento profundo de materiais, planejamento cooperativo e compreensão do comportamento dos peixes e das correntes. Assim, a pesca impulsionou a engenharia e a estratégia, sendo que técnicas como o uso de anzóis de osso e concha só surgiriam no Neolítico.

Detalhe com ampliação da gravura de rede de pesca em placas de xisto, Artista Magdaleniano (c. 15.800 anos). Robitaille et al., 2024.
Introdução
A palavra "haliêutica", do grego halieutikós, define-se classicamente como "a arte de pescar". Contudo, esta exposição propõe uma imersão mais profunda neste conceito, explorando a sua rica dualidade.
A "arte" aqui é compreendida em sua dupla acepção: por um lado, a destreza, o engenho e a maestria do ofício pesqueiro, um complexo sistema de saberes empíricos sobre os ciclos da natureza, o comportamento das espécies e a confecção de ferramentas; por outro, a representação pictórica, a arte como registro, interpretação e reflexão cultural sobre essa atividade fundamental para a humanidade.
Ao observar uma ilustração de pesca, vemos um ato de captura e também um microcosmo de cultura, relações sociais e conhecimento acumulado. Sendo assim, esta exposição é uma viagem por essa intersecção, onde o gesto do pescador e o traço do artista se encontram para contar uma história milenar.
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Pescando peixe-agulha de manhã cedo, Anton Laurids Johannes Dorph (1880)
Para iniciar esta jornada, duas obras são apresentadas em contraponto, estabelecendo a vasta gama de experiências que a pesca abrange. A primeira, Pescando peixe-agulha de manhã cedo (1880), do dinamarquês Anton Laurids Johannes Dorph, nos envolve em uma atmosfera de calma e cooperação. A luz suave da manhã ilumina uma cena de trabalho metódico, onde cada pescador desempenha um papel na operação da rede de deriva. A obra é um testemunho da pesca como uma atividade comunitária, ritmada pela natureza, capturando a serenidade e a beleza do ofício.
Em nítido contraste, Pesca do tubarão (1885), do americano Winslow Homer, nos lança no centro de um drama de força e perigo. A tensão é palpável: o mar agitado, a pequena embarcação à mercê das ondas e o confronto direto entre o homem e a poderosa criatura marinha. Aqui, a pesca é retratada como uma luta pela sobrevivência, um teste de coragem e resistência contra a força bruta do oceano. Juntas, estas duas visões — uma de harmonia e outra de conflito — definem o campo temático da nossa exploração: a relação multifacetada e por vezes contraditória da humanidade com o mundo aquático.
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Talvez a mais fascinante das técnicas simbióticas seja a Pesca com Corvos-Marinhos. Praticada há mais de 1300 anos, principalmente no Japão (ukai) e na China, este método envolve o uso de corvos-marinhos (ou cormorões) treinados. O pescador, conhecido como ushō no Japão, amarra um laço na base do pescoço da ave, que a impede de engolir os peixes maiores que captura. A ave mergulha, captura o peixe e retorna ao barco, onde o pescador a faz regurgitar a presa. Esta tradição, registrada em textos chineses do século VII e japoneses do século VIII, era tão prestigiosa que foi patrocinada por imperadores e shoguns, como Oda Nobunaga e Tokugawa Ieyasu, tornando-a um espetáculo cultural e um símbolo da relação simbiótica entre o homem e o animal. As gravuras ukiyo-e, como a de Keisai Eisen (1848), capturam a atmosfera única desta prática noturna.

Pesca com Corvos-Marinhos no Rio Nagara, Keisai Eisen (c. 1848).
A Pesca com Atração Luminosa (Facho) é uma técnica noturna que explora a fototaxia positiva de muitas espécies de peixes. Obras como Pesca noturna na entrada de uma caverna (1828), autor desconhecido, e Pesca com tocha (1845-1856), de Paul Kane, mostram como tochas e fogueiras eram usadas para atrair os peixes para a superfície, onde podiam ser facilmente capturados com lanças de múltiplos dentes (zagaias) ou puçás. Este método, praticado em diversas culturas ao redor do mundo, transforma a escuridão da noite em uma aliada do pescador.

Pesca com tocha, Paul Kane (1848-1856).
Saberes das Águas – Américas, Ásia e Europa
Agora veremos um breve panorama comparativo que destaca a engenhosidade humana em ecossistemas distintos, observando as técnicas e a forma como foram representadas.
Na América do Norte, as aquarelas do artista inglês John White, da expedição a Roanoke (1585-1590), são valiosos documentos etnográficos. Sua obra "A maneira de pescar" retrata uma eficiente técnica indígena com cercados de estacas para a captura de peixes com lanças e puçás. A análise da obra, porém, exige a compreensão de que é um olhar europeu sobre o "Novo Mundo", mediado por uma perspectiva cultural que talvez enfatizasse a abundância para promover a colonização.

Documento etnográfico importante sobre a pesca indígena com cercados na América do Norte. John White, 1580s. Fonte: The Trustees of the British Museum, CC BY-NC-SA 4.0.
Na Ásia, a arte oferece janelas para tradições pesqueiras milenares. A pintura coreana Pesca, do memorável artista Kim Hong-do (c. 1745-1806), é um exemplo primoroso. Parte de seu álbum de Pinturas de Gênero, ilustra a pesca de curral. Nela, uma grande armadilha de estacas em zigue-zague captura os peixes no rio.
A cena detalha o trabalho comunitário, onde pescadores em barcos usam cestos para coletar o pescado aprisionado. Diferente do olhar externo de John White, Kim Hong-do pintava para um público local, celebrando a vida e o trabalho do povo comum durante a Dinastia Joseon.

![[3] EXEA Winslow_Homer_-_Shark_fishing.jpg](https://static.wixstatic.com/media/b8f352_e9eb3a0e8dcf4fbd87d58f836151f8a3~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_673,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/%5B3%5D%20EXEA%20Winslow_Homer_-_Shark_fishing.jpg)
Pesca do tubarão, Winslow Homer (1885)
A Pesca nos Grandes Impérios da Antiguidade
Com o advento das grandes civilizações, a pesca evoluiu de uma prática de subsistência para uma atividade econômica organizada, culturalmente significativa e, inclusive, tema de reflexão literária e filosófica.
No Egito Antigo, a vida dependia do Nilo, e a pesca era central. Representações em tumbas e relevos, como as de Usheret (c. 1430 a.C.) e Saqqara (c. 2400 a.C.), mostram técnicas com lança e múltiplos anzóis. Essas obras tinham significado ritual, buscando garantir sustento e abundância na vida após a morte.

Pescador egípcio pescando com lança, Tumba de Usheret (c. 1430 a.C.).

Cena de pesca e caça de aves em calcário, Egípcia (por volta de 1353-1336 a.C.)
No Mundo Greco-Romano, a pesca permeava a cultura, da gastronomia à literatura. Mosaicos detalhados, como os encontrados em La Chebba, na Tunísia, retratam uma variedade de espécies e técnicas, incluindo o uso de covos (armadilhas em forma de cesto) e redes, evidenciando uma indústria pesqueira bem estabelecida. No entanto, a contribuição mais notável deste período é a Halieutika, um poema épico em cinco volumes escrito pelo poeta grego Opiano de Córico no século II d.C.
A Halieutika é uma obra literária complexa que descreve o comportamento das espécies marinhas, as técnicas de captura e a relação entre o homem e o mar. A obra utiliza o mundo aquático — com suas "guerras" entre espécies, "paixões" e "ardis" — como uma poderosa alegoria para a sociedade humana, meditando sobre a moralidade da exploração da natureza e o lugar da humanidade no cosmos.


Mosaico de pesca com covos, Romano (Século III d.C.). Fonte: Museu Arqueológico de Sousse, CC BY-SA 3.0.

Coleta de esponjas marinhas na costa da Síria, Leon Sorel (1872).
Técnicas e Tradições Singulares
Destacaremos agora os métodos de pesca notáveis por sua especificidade e engenhosidade, demonstrando adaptações únicas a nichos ecológicos ou culturais particulares.
A Coleta Manual e o Mergulho representam as formas mais primordiais de interação com os recursos aquáticos. A pintura Mulheres coletando ostras em Cancale (1878), de John Singer Sargent, retrata a coleta na zona entre-marés, uma atividade frequentemente associada ao trabalho feminino e comunitário.
Já a gravura Coleta de esponjas marinhas na costa da Síria (1872) ilustra a antiga e arriscada prática do mergulho livre para a coleta de esponjas no fundo do mar, uma atividade que exigia uma capacidade pulmonar e uma coragem extraordinárias. A draga manual, como vista na obra O pescador (1883) de Jozef Israëls, representa uma evolução dessa coleta, uma ferramenta simples que permite "raspar" o fundo em busca de moluscos.
Na Europa, a pintura do britânico Francis Swaine, "Cena de pesca, com um iate real perto da costa" (1768), nos transporta para um movimentado porto do século XVIII. Em primeiro plano, pescadores executam o arrasto de praia, uma arte de pesca coletiva e ancestral, onde uma grande rede é puxada da costa. A obra justapõe o trabalho braçal dos pescadores com a pompa do iate real ao fundo, destacando as diferentes realidades sociais que compartilhavam as mesmas águas.

Do outro lado do Atlântico, na Civilização Asteca, a pesca era igualmente essencial para a sobrevivência da metrópole de Tenochtitlan, construída sobre o Lago Texcoco. Fontes como o Códice Florentino ilustram uma variedade de métodos, como o uso de redes, arpões e anzóis. A mais engenhosa de suas adaptações foi o sistema de chinampas. Frequentemente descritas como "jardins flutuantes", as chinampas eram, na verdade, um sofisticado sistema de agricultura e aquicultura integrada.
Eram ilhas artificiais construídas com lama do fundo do lago e vegetação, estabilizadas por árvores plantadas em suas bordas. Os canais entre as chinampas não serviam apenas para irrigação e transporte, mas também funcionavam como criadouros de peixes e outros organismos aquáticos, criando um ecossistema altamente produtivo e autossustentável no coração do império.

"Em tlahtlama: o pescador". Livro 10, Fólio 58v. Richter & Houtrouw (2023)
Um Olhar Transcultural sobre a Arte de Pescar
Abandonando uma cronologia estrita, esta seção celebra a extraordinária diversidade de soluções que diferentes culturas ao redor do mundo desenvolveram para o desafio da pesca. Demonstra-se aqui como o ambiente, os recursos disponíveis e a visão de mundo de cada povo moldam de forma única a tecnologia, a arte e a cultura associadas a esta prática.

Pesca com rede de arrasto no Rio Commewijne, no Suriname. Louise von Panhuys (1811-1816).

Pesca (c. 1745-1806) de Kim Hong-do, álbum de Pinturas de Gênero. Fonte: The Trustees of the British Museum, CC BY-NC-SA 4.0.

Mulheres coletando ostras em Cancale (1878), de John Singer Sargent.
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Pesca noturna na entrada de uma caverna. Desconhecido (1828).
Conclusão
Ao fim desta jornada, viajamos por milênios e continentes, guiados pela linha, pelo anzol e pela rede. Vimos como a Haliêutica — a arte de pescar — se manifesta de duas formas: na engenhosidade dos pescadores e na sensibilidade dos artistas que registraram seu ofício.
De uma gravura em pedra de 15.000 anos à vibrante pintura europeia, cada obra revelou uma técnica e também um fragmento da vida humana. Exploramos a nossa profunda e universal conexão com as águas e a nossa capacidade de adaptar, criar e sobreviver.
Esta exploração está apenas começando. Em breve, o Museu Marítimo EXEA continuará a desvendar os segredos da Haliêutica, incluindo um mergulho profundo na épica e dramática arte da caça à baleia retratada em tela.
Aguardamos você para a próxima pescaria.
Créditos
Exposição: Haliêutica - A arte de Pescar
Ariana Guimarães
Bacharel em Engenharia de Pesca / UFRPE
Profª IFPB / Cabedelo
Pesquisadora PREAMAR/PB
Ticiano Alves
Bacharel em Engenharia de Pesca / UFRPE
Doutor em Arqueologia / U.Coimbra
Pesquisador PREAMAR/PB
Autoria
Ticiano Alves
Coordenador de Exposições
Museu Marítimo EXEA
Leandro Vilar
Diretor Geral
Museu Marítimo EXEA
Curadoria
Ticiano Alves
Coordenador de Exposições
Museu Marítimo EXEA
Diagramação e design
Juliana Rios
Coordenadora de Marketing
Museu Marítimo EXEA
Marketing da Exposição
Whispers of the Sea (Sussuros do mar)
MusicGen Envato
Música Ambiente
Leandro Vilar
Diretor Geral
Museu Marítimo EXEA
Camila Rios
Diretora Técnica | Museóloga
Museu Marítimo EXEA
Raphaella Belmont Alves
Diretora Executiva | Revisora ortográfica
Museu Marítimo EXEA
Revisão da Exposição
Museu Arqueológico de Sousse. CC BY-SA 3.0 <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0>, via Wikimedia Commons.
PINTO, Gislaine. Ukai: a arte japonesa de pesca com aves. Magnus Mundi, 10 fev. 2021. Disponível em: https://www.magnusmundi.com/ukai-a-arte-japonesa-de-pesca-com-aves/. Acesso em: 28 jul. 2025.
Richter, Kim N.; Houtrouw, Alicia Maria . Disponível em Digital Florentine Codex/Códice Florentino Digital, editado por Kim N. Richter e Alicia Maria Houtrouw, "Livro 10: O Povo", fol. 58v, Getty Research Institute, 2023. https://florentinecodex.getty.edu/en/book/10/folio/58v/images/5c4d10a7-435e-40f2-8d93-e3fe026d72c6 Acessado em 24 de junho de 2025 .
Robitaille J, Meyering L-E, Gaudzinski-Windheuser S, Pettitt P, Jöris O, Kentridge R. (2024) Upper Palaeolithic fishing techniques: Insights from the engraved plaquettes of the Magdalenian site of Gönnersdorf, Germany. PLoS ONE 19(11): e0311302. https://doi.org/10.1371/journal.pone.0311302
The Trustees of the British Museum . Compartilhado sob uma licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional (CC BY-NC-SA 4.0) .
Fontes e referências
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